ENTREVISTA: “No coração do poeta cabe a multidão” *
ESPECIAL
Por Bárbara Souza e Luize Meirelles
Fotos: Anna Clara Oliveira
* Cidadão (Capinan e Morais Moreira)
Sol ensaiando aparecer, chuva fina lembrando que Salvador também tem inverno, casa branca com janelas e portas azuis com marcas do tempo, sala que abriga muitas, muitas memórias nas paredes, estantes, móveis. Aquelas que prendem o olhar e convidam a conhecer sua história. Nesse cenário, uma figura se destaca, de olhar seguro e fala profunda. José Carlos Capinan. O poeta e compositor baiano abriu as portas de sua casa, em uma rua tranquila no bairro do Rio vermelho, para receber o Portal IFBA para uma entrevista. Capinan, no próximo dia 1º de agosto, às 17h, receberá o título de Doutor Honoris Causa (DHC), concedido pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), em uma cerimônia aberta ao público no Espaço Cultural 2 de Julho, da Reitoria do IFBA, localizada na Avenida Araújo Pinho, nº 39, no bairro do Canela, em Salvador, Bahia.
Portal IFBA: Quando recebeu o título de DHC da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em setembro de 2024, você disse que “nunca” esperou receber "um título dessa grandeza”, que estava surpreso com a honraria e não havia sequer almejado esse tipo de reconhecimento pela Academia. Agora, você vai receber outro título de Doutor Honoris Causa, dessa vez outorgado pelo IFBA. O que sente quando constata que, em menos de um ano, a Academia está reverenciando pela segunda vez Capinan?
Capinan: É um título que surpreende, porque a gente não imagina o merecimento. E, ao mesmo tempo, sente-se uma vaidade natural por conta de que são duas instituições que me oferecem, que me outorgam o título, ligadas à educação. Isso é que eu acho muito importante e especial mesmo, porque eu creio que se temos algum caminho para melhorar, para fazer o mundo melhor, trazermos mais igualdade, liberdade, esse caminho é pela educação. O reconhecimento por entidades ligadas à educação, do meu trabalho, me faz sentir vontade de fazer mais, de dar e de um profundo agradecimento, porque a gente nem sempre tem a afirmação do que fazemos. É um tempo de muita negação, de muito ódio, guerra. E isso é uma prova, uma coisa de afetividade, de semelhanças de ideais e de realizações. Então, eu me sinto muito feliz e, ao mesmo tempo, sinto também um certo compromisso de corresponder, de continuar fazendo, já que a idade diminui um pouco a capacidade de enfrentar essa guerra desse mundo perverso, desigual, injusto. A gente não sabe até quando terá forças para resistir, para contribuir com a mudança. Então, acho que o título fornece energia, satisfação e vontade de superar, de fazer mais. Muita energia, energia nova, muito gratificante. Eu sinto essas coisas humanas. (risos)
Portal IFBA: Você é considerado um dos maiores letristas da MPB, e tem parcerias célebres com artistas como Geraldo Azevedo, Gilberto Gil, João Bosco, Moraes Moreira e Roberto Mendes, só para citar alguns. Mas, no Brasil, em geral, os intérpretes das canções são mais conhecidos do que os compositores. Você considera que o fato de o IFBA e a Ufba outorgarem o título DHC - que é a mais alta honraria concedida pelas instituições de ensino -, pode contribuir para um maior reconhecimento público dos compositores?
Capinan: Com certeza, eu acho que sim porque, volto a dizer, eu acho que a educação representa um papel muito grande. E educar é isso, de uma certa forma, difundir, divulgar comportamentos que ajudam a transformar a realidade e suportar. Não é abraçar a dificuldade do outro, porque praticamente eu sou uma pessoa que tem coisas que estão acima da capacidade, vamos dizer assim, de consumo de outras pessoas, que às vezes não temos nem o que comer. Isso eu acho que necessariamente tem que mudar. Não tem como. Minha contribuição é buscando esse tipo de realidade de transformar, de ensinar a ser melhor porque também nós somos muito mal educados, somos mesmo de um mundo que não é justo, que é cruel. E isso nós deixamos de ser cidadãos, camaradas, companheiros, e nos tornamos inimigos naturalmente, porque tem a competição. É uma competição cruel, não tem luvas nessa competição. Paulada para lá, paulada para cá, perversidade, daí por diante. Eu acho que contribuir para humanizar e a arte humaniza, a educação humaniza. Minha contribuição é essa, a pretensão de melhorar.
Portal IFBA: A música “Yayá Massemba” traz em seu refrão uma mensagem poderosa de aprendizado e solidariedade: “Vou aprender a ler para ensinar meus camaradas”. Se você pensar na sua trajetória de vida e artística, o que mais gostou de aprender e poder ensinar a outras pessoas?
Capinan: Faça poesia. (risos) É isso que eu pretendo e imagino que é aí que está a minha vocação. Tem aí a minha vontade de ajudar através desse recurso, dessa arte. E é muito difícil ser poeta no Brasil, porque o Brasil tem muitos poetas bons e a poesia brasileira é maravilhosa. Incrível desde sempre, desde Gregório de Matos até agora, os concretos e outros poetas. Então, acho que, quando me diplomei em pedagogia, foi quando comecei a aprender que existem muitas escolas literárias, historicamente. E eu mudei a minha ideia de o que é poesia. Percebi que a poesia é uma atividade que também tem técnicas de fazer e que você aprende essas técnicas, aprende a superar. Eu, por exemplo, nunca consegui fazer um soneto, porque é uma técnica diferente. Trabalho mais com verso livre e, assim, também versos mais simples. Eu trabalho muito com heptassílabos, versos de sete sílabas. Naturalmente, como se estivesse falando, não conto sílaba. Eu sinto o ritmo na própria poesia. Sei que existem regras de acentuação. E eu faço isso organicamente. Não conto se está na sétima ou na quarta. Mas naturalmente eu escrevo em heptassílabos, grande parte de trabalhos que fiz com métrica e rima. Na verdade, a maioria do que eu escrevo é com verso livre e é assim que eu me identifico.
Eu sou um leitor também de poetas populares e também conhecia os poetas populares cantadores de feiras, porque eu nasci no interior. Então, na feira da cidade, de Esplanada, Entre Rios, sempre tinha cantadores que se desafiavam, cantavam sozinhos. E isso me deu muita ideia a respeito de aonde você vai, qual o suporte que você vai usar para o seu trabalho, para o seu poema. O suporte principal da poesia era o livro. E eu, a partir de determinada época, comecei a usar mais a música. Eu acho que ela divulga melhor a poesia, difunde melhor a poesia. Acho que a música populariza, atinge. Ao mesmo tempo, somos um país de analfabetos. Ainda não conseguimos uma estatística em relação à leitura que satisfaça a dimensão de um Brasil contemporâneo, educado, moderno, capaz de fazer isso, ensinar os camaradas, em geral, universalmente. E aí a música permite o maior alcance. Por conta disso, essas coisas, eu fui muito criticado por poetas que preferem que a poesia tenha como suporte o livro. O livro é muito importante. Meus primeiros poemas foram editados com suporte do livro, do jornal, da revista e daí por diante. Poesia escrita. Por que a poesia cantada? Eu não posso dizer que a música é um suporte da poesia. Porque a poesia e a música, quando se juntam, viram uma terceira coisa, que é a canção. Então, você não pode dizer que a música é suporte do poema, não. Ele cria outro objeto cultural, que é a canção, que é o que se canta, é outra história. E eu percebo que é muito mais interessante, é muito mais vivo, entra mais na alma das pessoas.
Portal IFBA: Poderia mencionar quais são, atualmente, os principais desafios para quem atua com composição no Brasil?
Capinan: Os desafios, para quem começa, parece que são semelhantes aos de sempre, universais, que é você ocupar esse panteão da música popular brasileira, que é riquíssimo, difícil de um jovem mostrar o seu trabalho, o seu talento, a sua capacidade criativa, porque é uma loucura. Você tem meios de divulgação muito fortes que não dão espaço. Os festivais foram muito importantes para a minha geração. Eles nos deram praticamente quase todos aqueles que foram jovens e atualmente ocupam uma visibilidade maior no desempenho da música popular brasileira. Na época que tinham muitos, quase todos eles, Chico [Buarque], [Gilberto] Gil, Caetano [Veloso], Edu [Lobo], Paulino da Viola, Geraldo Azevedo, Roberto [Mendes]. A minha geração teve dificuldades com, por exemplo, a música que tocava no rádio, que era praticamente música estrangeira. Você não via música nacional no rádio. Até que foi feita uma lei [Decreto nº 50.929, de 8 de julho de 1961] obrigando que as rádios tocassem 50% de música nacional, 50% de música estrangeira. Você vê o seu próprio mercado dividido meio a meio. Mas foi uma evolução, um passo a frente. A criação do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o ECAD, também foi uma coisa importante, embora eu acho que ainda existam distorções. Existem distorções por conta, inclusive, de que a metodologia para você saber... O direito autoral é dividido entre aqueles que têm maior audiência, maior volume de audiência. Agora para contar essa audiência, para saber exatamente quem tocou mais do que quem, é muito complicado. Tem métodos um pouco mais científicos, avançados, com estatísticas, e outros métodos são, por exemplo, a planilha de uma rádio, ela é obrigada a fornecer dizendo o que tocou. Tem milhares de rádios no Brasil e não sei se elas têm o cuidado de anotar o que elas tocam, o que elas executam. Então, o direito de execução, eu acho que ainda precisa de métodos mais confiáveis. Então, isso é uma dificuldade para quem toca. Eu, por exemplo, acho que o ECAD não conhece o meu trabalho. (risos) Eu acho que ele me ignora. De qualquer forma, não dá para você viver do que faz, sendo poeta. É muito complicado. Para o músico, talvez seja mais fácil, porque o músico pode trabalhar em show, pode trabalhar em várias atividades, que compensam o que não é justo, em outra, no direito de execução através de rádio etc. Tem o direito fonomecânico também, que é o direito de venda de cassetes, de discos, do que eu sei lá. Eu, por exemplo, nunca consegui acompanhar isso de forma que eu pudesse ter confiança no que ganho com aquilo que faço. Senão eu não precisaria fazer publicidade, fazer outras coisas para compensar. Eu sei que com o direito autoral meu, no caso, eu não criaria uma família. (risos) Não teria como sustentar a minha família. Então, embora hoje haja um reconhecimento mais visível do que na época em que comecei, na época em que eu era emergente, não me dá condições de ter uma vida. Essa é uma queixa muito generalizada. Muitos, muitos compositores se não segurarem na área do show, eles não conseguem ter uma vida.
Portal IFBA: O Museu Nacional de Cultura Afro Brasileira (Muncab) tem como objetivo a valorização de aspectos da cultura de matriz africana, destacando a sua influência sobre a cultura brasileira, e está instalado no estado mais preto do Brasil. Poderia falar brevemente dessa ideia necessária no contexto baiano e brasileiro, e de sua implementação?
Capinan: Eu dei uma contribuição muito grande à criação do Muncab. Eu trabalhei há mais de 20 anos. Mas eu adoeci por conta, inclusive, das condições de trabalho. Trabalhamos dentro de uma ruína, sem recursos, até que foi possível depois de um convênio com o Ministério da Cultura, um convênio enquanto Juca Ferreira foi ministro, e também durante [Gilberto] Gil também, que ele se sensibilizou com a ideia do Muncab. Mas, os primeiros recursos vieram com o convênio assinado com o Ministério, enquanto o Juca Ferreira era ministro. Isso foi o que deu a primeira coluna de sustentação para que o Muncab pudesse atuar. Hoje eu não sei como ele está, porque inclusive parece que há uma coisa assim que é semelhante a um apagamento desses tempos mais difíceis. Mas foi possível, no caso, porque havia uma instituição que agregava muitas pessoas, diversas profissões, advogados, médicos, artistas, criadores. E, sobretudo, houve que se agregaram nessa entidade que era a Amafro (Associação de Amigos da Cultura Afro-Brasileira). Isso foi muito importante. Havia nomes muito sérios, muito dedicados, como a professora Maria Augusta [Rocha], que fazia um trabalho de educação muito forte, no Muncab, com voluntários. Havia outras pessoas, como Nerivalda Almeida, Maria Augusta, já falei, que trabalhava com voluntários. Depois, teve também a Eulâmpia, a Eulâmpia Reiber. Muita gente. E artistas como o Jota Cunha e, principalmente, Emanoel Araújo, que é um nome internacional, que trabalhou em museus de São Paulo como a Cinemateca, criou o primeiro Museu Afro lá em São Paulo. Então, ele é um pioneiro e era um artista de uma capacidade inventiva muito grande e também gerente interessante de museu. Houve a contribuição também de museólogos aqui, como a professora Maria Célia [Teixeira Moura Santos], que é uma doutora. Ela é uma pessoa que deu também as primeiras coordenadas para a criação do museu, inclusive indicando de forma arquitetônica como isso deveria ser. Então, essa memória é muito importante do Muncab e eu gosto de trazer ela a público, porque foi um momento mais de sacrifício e de muita dedicação. Eu acho que não pode ser relegado, ou seja, muito importante.
Portal IFBA: Ainda muito jovem, por volta dos 15 anos, você começa a escrever poesias, e perto dos 20, já em Salvador, quando entra para o teatro no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE), inicia uma trajetória relevante na música popular brasileira, compondo com artistas em diversas frentes de engajamento por justiça e liberdade. Sua história é inspiração para muitos jovens, incluindo nossos estudantes, que estão inseridos em diferentes realidades e contextos sociais, nas mais de 20 cidades onde IFBA está presente. Considerando o mundo hoje, com todos seus tensionamentos políticos, econômicos e sociais, e a sua experiência de vida, qual conselho pode deixar para nossos estudantes?
Capinan: Que conselho? (risos) Acho que uma coisa fundamental é o altruísmo. Eu acho que entender o outro seja um caminho interessante para a gente aplacar, diminuir muito a competição agressiva, a competição sem ética, a competição destrutiva. O ego é importante, você ter o seu eu fortalecido, é interessante, mas nunca por conta de uma egolatria, egoísmo ou algo que seja. Então, acho que o altruísmo ligado a um querer criativo, um querer inventivo, um querer transformador, a necessidade de você mudar, melhorar o mundo nesse sentido, acho importante. E, de certa forma, recuperar o humano, humanizar as relações, humanizar toda a ideia de fazer, vir também estofada com a ideia de um humanismo, de um necessário incômodo. Com o incômodo no sentido de se incomodar com o sofrimento e ter, com relação a isso, relações que permitam mudanças que beneficiem universalmente a todos, o homem mesmo. Eu acho que minha posição clara em relação às filosofias é o humanismo.

- Capinan lê discurso de Mãe Stella de Oxóssi na Academia de Letras da Bahia (ALB), em setembro de 2013. Ialorixá do terreiro Ilê Axé Opó Afonjá, Mãe Stella foi eleita imortal da ALB em 25 de abril de 2013.
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Sol ensaiando aparecer, chuva fina lembrando que Salvador também tem inverno, casa branca com janelas e portas azuis com marcas do tempo, sala que abriga muitas, muitas memórias nas paredes, estantes, móveis. Aquelas que prendem o olhar e convidam a conhecer sua história. Nesse cenário, uma figura se destaca, de olhar seguro e fala profunda. José Carlos Capinan. O poeta e compositor baiano abriu as portas de sua casa, em uma rua tranquila no bairro do Rio vermelho, para receber o Portal IFBA para uma entrevista. Capinan, no próximo dia 1º de agosto, às 17h, receberá o título de Doutor Honoris Causa (DHC), concedido pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), em uma cerimônia aberta ao público no Espaço Cultural 2 de Julho, da Reitoria do IFBA, localizada na Avenida Araújo Pinho, nº 39, no bairro do Canela, em Salvador, Bahia.


