"É urgente que as instituições de ensino elaborem suas políticas de enfrentamento ao assédio sexual"
ENTREVISTA
Diana Guimarães Azin é procuradora-chefe da Procuradoria Federal junto ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Prevenção e Combate ao Assédio Sexual nas IFES (Instituições Federais de Ensino Superior), da Procuradoria-Geral Federal (PGF), da Advocacia-Geral da União (AGU). Pós-graduada em Direito Civil e mestranda em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologias para a Inovação (Profinit), a advogada cearense tem desenvolvido à frente da coordenação do GT um trabalho constante de sistematização de dados e análise sobre os casos de assédio sexual em universidades e institutos federais.
Nesta entrevista ao Portal do IFBA, Diana fala sobre a incidência desses casos nas IFES, as normas e trâmites legais do processo de investigação de denúncias de assédio sexual nas instituições federais de ensino, os desdobramentos jurídicos previstos pela legislação e a aplicação de penalidades aos assediadores.
“O assédio sexual enquadra-se como falta grave, e a conduta configura afronta aos deveres funcionais previstos na Lei nº 8.112, entre eles a moralidade administrativa, configurando hipótese de improbidade administrativa, passível, portanto, de demissão”, explica. A procuradora do IFCE relata que “diversos servidores, principalmente docentes”, de universidades e institutos federais foram demitidos de seus cargos em razão de prática de assédio sexual. Mas, logo no início da entrevista, enfatiza: a ocorrência de casos de assédio sexual é um fenômeno que atinge “não só nas instituições de ensino, mas qualquer ambiente organizacional”. Vale conferir!
"Nenhum servidor deveria assumir um cargo de gestão sem passar por esse processo de formação, de cursos de formação que abordem o fenômeno. É também uma forma de evitar essa prática [assédio sexual]”.
Portal do IFBA: Pesquisando sobre casos de assédio sexual nas instituições federais de ensino, a impressão que se tem é que historicamente a incidência desses casos é grande, o processo investigatório é lento e na maioria dos casos a penalidade aplicada é branda ou inexiste. O cenário é este mesmo? Se sim, por que isso acontece?
Diana Azin: Na realidade, a incidência de casos de assédio sexual se dá não apenas nas instituições de ensino, mas em qualquer ambiente organizacional. Essa recorrência ocorre por diversos fatores, dentre eles a ausência de um tratamento adequado das denúncias de assédio, observado desde o despreparo para o acolhimento da vítima, perpassando pela condução dos processos disciplinares e, por fim, na aplicação da penalidade devida. Certamente, a aplicação de penas de advertência ou até mesmo o arquivamento do processo, mesmo quando constatada a conduta infracional por meio de provas, é um fator de estímulo a tais práticas.
Portal do IFBA: Qual seria a penalidade adequada a ser aplicada nos casos em que se comprove a prática do assédio sexual?
Diana Azin: O assédio sexual enquadra-se como falta grave, e, apesar de não ser previsto expressamente como infração administrativa, a conduta configura afronta aos deveres funcionais previstos na Lei nº 8.112, de 1990 [que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais], entre eles a moralidade administrativa, assim como incorre na proibição de valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública, configurando hipótese de improbidade administrativa, passível, portanto, de demissão. Esse entendimento encontra respaldo no Inciso IV, artigo 132, da Lei n.º 8.112/1990, o qual prevê que a demissão será aplicada no caso de improbidade administrativa, bem como já se encontra consolidado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça [STJ].
Portal do IFBA: Já foram identificados casos de demissão de servidores de instituições de ensino por prática de assédio sexual?
Diana Azin: Sim. Diversos servidores, principalmente docentes, de Universidades Federais e Institutos Federais foram demitidos de seus cargos em razão de prática de assédio sexual. Posso citar, a título de exemplo, a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), a Universidade Federal de Goiás (UFG), o Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) e o próprio Instituto Federal do Ceará (IFCE). Importante ressaltar a suspensão do sigilo de dados após o trânsito em julgado dos processos administrativos disciplinares, de modo que é possível que o infrator tenha seu nome exposto em diversos meios de comunicação, inclusive, mídias sociais, o que dificulta seriamente uma vaga no mercado de trabalho. (Foto: IBCP)
"O assédio sexual enquadra-se como falta grave, e a conduta configura afronta aos deveres funcionais previstos na Lei nº 8.112, entre eles a moralidade administrativa, configurando hipótese de improbidade administrativa, passível, portanto, de demissão”.
Portal do IFBA: Já foi possível fazer uma avaliação sobre os efeitos dessas demissões na redução de casos de assédio sexual?
Diana Azin: Não há dúvidas de que a impunidade é um fator de estímulo à prática de infrações. A partir do momento em que há uma consciência coletiva de que a conduta infracional será combatida fortemente pela Instituição, e, no caso específico da prática de assédio, terá por consequência jurídico-disciplinar a perda do cargo público, é certo que haverá mudança de comportamento no ambiente institucional. Essa mudança pôde ser observada no IFCE, após um trabalho preventivo que envolvia reunião com os servidores para esclarecer o fenômeno do assédio e seus desdobramentos jurídicos, bem como a atuação colaborativa da Procuradoria Federal, da Corregedoria e da Ouvidoria, para orientar a condução dos processos administrativos disciplinares, identificamos a redução significativa de denúncias, assim como, a partir de relatos das próprias alunas, o IFCE se tornou um ambiente mais seguro para as mulheres. Por isso, é urgente que as instituições de ensino elaborem suas políticas institucionais de enfrentamento ao assédio sexual, priorizando uma ampla conscientização no ambiente organizacional, a fim de alertar possíveis assediadores acerca das consequências de seus atos, bem como demonstrando às vítimas que aquelas condutas não são toleradas pela Administração.
“Diversos servidores, principalmente docentes, de Universidades Federais e Institutos Federais foram demitidos de seus cargos em razão de prática de assédio sexual. Importante ressaltar a suspensão do sigilo de dados após o trânsito em julgado dos processos administrativos disciplinares, de modo que é possível que o infrator tenha seu nome exposto em diversos meios de comunicação, inclusive, mídias sociais, o que dificulta seriamente uma vaga no mercado de trabalho”.
Portal do IFBA: Nesse contexto, como se dá a atuação das procuradorias jurídicas?
Diana Azin: A atuação dos órgãos jurídicos tem se dado de modo preventivo, orientando juridicamente a atuação da autarquia, orientando juridicamente servidores quanto aos desdobramentos jurídicos-disciplinares dessa infração funcional, assim como orientando a condução legal dos processos administrativos disciplinares que tenham por objetivo a apuração de tais condutas e orientar a atuação das procuradorias no assessoramento jurídico de PADs sobre assédio sexual. Ainda, de forma mais ampla, em uma perspectiva preventiva e no sentido de conferir segurança jurídica das políticas de integridade internas de combate ao assédio, a Procuradoria-Geral Federal instituiu, por meio da Portaria PGF nº 790, de setembro de 2019, o Grupo de Trabalho de Prevenção e Combate ao Assédio Sexual nas Instituições de Ensino, que visa propor esclarecimentos acerca do fenômeno do assédio sexual no âmbito das instituições federais de ensino, facilitando a compreensão do fenômeno e, por extensão, auxiliando na promoção da prevenção e combate a esse tipo de violência. Nessa atuação preventiva e combativa, nós não mudamos cultura, mas mudamos comportamento.
Portal do IFBA: Numa apresentação feita pela senhora, são apontados três canais de denúncia de casos de assédio sexual: a Ouvidoria da própria Instituição; delegacias da Polícia Civil ou delegacias especializadas de atendimento à mulher; e a Central de Atendimento à Mulher (Disque 180). Ou seja, no caso de uma ou um estudante ser vítima de assédio sexual no âmbito de uma instituição federal de ensino, essa vítima pode registrar denúncia na Ouvidoria da instituição e numa delegacia, e o servidor acusado de assédio será investigado nas duas esferas?
Diana Azin: É importante esclarecer que as infrações cometidas por servidor público no exercício de suas atribuições legais podem repercutir não apenas na esfera administrativa, mas também na cível, penal e improbidade administrativa, todas essas autônomas entre si, permitindo que o agente sofra sanções de diversas naturezas. No caso do assédio sexual, uma vez caracterizada a prática, o servidor poderá responder a processo administrativo disciplinar [PAD], à ação de improbidade administrativa, à ação indenizatória por danos morais, em favor da vítima e da própria instituição de ensino, e, ainda, à ação penal, se a violência sexual praticada se enquadrar em ilícito penal.
Portal do IFBA: Como são instâncias autônomas, pode haver por exemplo uma situação em que o acusado seja condenado na esfera penal e venha posteriormente a ser inocentado na esfera administrativa da instituição em que trabalha, ou o contrário?
Diana Azin: Em relação à repercussão de decisões divergentes, a Lei nº 8.112/90 prevê o afastamento da responsabilidade administrativa do servidor apenas no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria. No entanto, a decisão judicial pode condenar o servidor em perda da função pública, com base no disposto no inciso III da Lei nº 8.429/1992 [dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências].
“Não há dúvidas de que a impunidade é um fator de estímulo à prática de infrações. A partir do momento em que há uma consciência coletiva de que a conduta infracional será combatida fortemente pela Instituição, e, no caso específico da prática de assédio, terá por consequência jurídico-disciplinar a perda do cargo público, é certo que haverá mudança de comportamento no ambiente institucional”.
Portal do IFBA: Entre as recomendações técnicas sobre como prevenir a prática do assédio sexual, a senhora lista, entre outros fatores, o estabelecimento de uma política institucional de combate ao assédio sexual, a divulgação de informação sobre o assédio sexual e a adoção de medidas cautelares visando à proteção da vítima. Que tipo de medida cautelar para a proteção da vítima um instituto federal pode adotar?
Diana Azin: Diante de denúncia de assédio sexual em que se identifique situação de comoção na comunidade, ou perceba que a permanência da vítima sob a ascensão do agressor provoca grave sofrimento, a Administração pode, com base na Lei nº 9.784/99 [que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal], adotar medidas cautelares administrativas visando assegurar a integridade física e psíquica da vítima, bem como para impedir que novos assédios venham a ocorrer. Como exemplo, podemos citar a alteração do exercício, alteração de turma, correção de prova por outro professor, entre outras medidas. O servidor também poderá ser afastado caso a sua presença a instituição possa tumultuar o processo administrativo disciplinar, conforme orienta a Lei nº 8.112/90.
Portal do IFBA: O crime de assédio sexual prescreve na esfera administrativa ou a vítima pode denunciar após completar a maioridade?
Diana Azin: Diferentemente do âmbito penal, em que o início da contagem do prazo prescricional se inicia apenas a partir do momento em que a vítima completar 18 anos, na esfera administrativa, o prazo é de cinco anos, contados a partir da data da em que a autoridade competente para a instaurar o procedimento administrativo disciplinar toma conhecimento do fato, ainda que envolva menores.
Portal do IFBA: Como gestores, servidores e estudantes podem contribuir para a eficácia das ações de prevenção e combate ao assédio sexual?
Diana Azin: Com a implementação de políticas institucionais de enfrentamento ao assédio sexual, que prevejam a execução de ações como disseminação de boas práticas para prevenção do assédio, disponibilização de material formativo que esclareça o fenômeno do assédio sexual, facilitando sua identificação por servidores e discentes, inclusão do tema em encontros pedagógicos, oferta de curso de formação, assim como o estabelecimento de fluxo de processo que envolva denúncia de assédio, capacitação de servidores para atuação em processos administrativos disciplinares e, especialmente, aplicação da pena devida ao agressor. Nenhum servidor deveria assumir um cargo de gestão sem passar por esse processo de formação, de cursos de formação que abordem o fenômeno. É também uma forma de evitar essa prática. Esse conjunto de ações certamente resultará, se não na erradicação, na redução significativa dos casos.