ESPECIAL - O que não nos contaram sobre a Abolição?
Por Bárbara Souza e Isadora Melo
O dia 13 de maio é uma data emblemática e simboliza importante marco histórico: a sanção da Lei Áurea, assinada em 1888 pela Princesa Isabel (filha de D. Pedro II), abolindo oficialmente a escravidão no Brasil. Mas o dispositivo legal não apagou as inúmeras violências perpetradas por séculos de escravização do povo negro no Brasil, tampouco descortinou uma vida fácil para negros e negras no País. Estudos e atualizações da história, antropologia e sociologia revelam que, ao contrário, a “libertação”, da forma como foi feita, contribuiu para a marginalização da população negra e a difusão de uma mentalidade racista. Apesar de a abolição ser romantizada pelos antigos livros de história, os fatos por trás deste episódio histórico envolvem mais interesses políticos e econômicos do que uma genuína decisão do Estado brasileiro voltada para a equidade e a justiça social.
Ouvimos a pedagoga do Campus Barreiras, Shirley Pimentel de Souza, as historiadoras e professoras Vera Nathália e Adriana Oliveira da Silva, do Departamento de História do Campus Salvador, e o sociólogo e professor Fábio Baldaia, também do Campus Salvador, sobre o tema. Confira as análises e reflexões enriquecedoras que elas e ele fazem:
SHIRLEY PIMENTEL DE SOUZA, pedagoga do Campus Barreiras
Portal IFBA: Qual a dimensão real – e nem sempre contada - da importância das lutas dos(as) negros(as) escravizados (as) e dos quilombolas para que a elite econômica e o Estado brasileiro aceitassem o fim da escravidão?
Shirley Pimentel: É importante destacar que enquanto houve escravidão no Brasil, houve também luta dos povos escravizados. A organização dos quilombos, que se mantêm vivos até hoje, é um exemplo clássico da luta e resistência negra no país. Então, a elite brasileira não “deu de presente” a abolição por ser “boazinha”. Havia grande pressão interna por meio dos vários movimentos negros revolucionários e pressão externa de outros países. Portanto, a abolição formal ocorrida em 1888 se deu por meio de luta, mas o Estado brasileiro não garantiu aos ex-escravizados e seus descendentes as condições necessárias para inserção social. Não teve indenização, não teve acesso à terra, não teve acesso à escolarização. Foi uma liberdade falsa e sofremos até hoje as consequências dela, pois a cidadania efetiva da população negra ainda não ocorreu.
Portal IFBA: Como pedagoga e pesquisadora, como avalia o fato de, mesmo depois de 130 anos da "abolição", o preconceito racial com a população negra ainda estar tão arraigado na sociedade brasileira?
Shirley Pimentel: O racismo tem estruturado a construção da sociedade brasileira. Isso significa que está presente nas bases que fundamentam nossas relações econômicas, educacionais, afetivas, culturais entre outras. Para se combater um problema de natureza estrutural é necessário que ocorra mais do que campanhas educativas do tipo “respeite a diversidade”. São necessárias políticas de Estado que garantam a inserção efetiva da população negra na sociedade, o que não acorreu no pós-abolição e que ocorre de maneira pouco eficiente na atualidade. Assim, considero que a promoção da igualdade racial em termos de direitos e condições sociais é o primeiro passo para o combate ao racismo. Quando tivermos condições iguais de acesso à educação de qualidade, à saúde, à terra, à moradia, à segurança pública, ao emprego, enfim, quando as desigualdades forem reduzidas, o combate ao racismo se tornará mais efetivo.
Portal IFBA: Os impactos do racismo são sempre nefastos. Como eles interferem no processo ensino-aprendizagem?
Shirley Pimentel: A prática de racismo tem demarcado relações de poder dentro dos diversos espaços sociais, não sendo diferente no contexto escolar. Nós, pessoas negras e quilombolas, na maioria das vezes, temos que enfrentar a desqualificação dos nossos conhecimentos dentro dos espaços escolares, o cerceamento do nosso direito de fala, as discriminações cotidianas em função das nossas características físicas, culturais e religiosas, a invisibilização da história africana e afro-brasileira, os estereótipos e discriminações das mais diversas formas. Tudo isso acarreta consequências negativas para a autoestima e para o processo de ensino-aprendizagem. É necessário que os sistemas de ensino realizem uma educação antirracista, de modo que o espaço escolar não seja mais um reprodutor de discriminações, mas sim um caminho para o combate ao racismo a partir de práticas pedagógicas inclusivas que reconheçam e valorizem os conhecimentos produzidos pela população negra ao longo da história. É fundamental ainda que as práticas racistas cotidianas sejam combatidas em todos os níveis e etapas de ensino, desde o chamar a coleguinha de “macaca” na educação infantil até o epistemicídio nas universidades. Acredito na escola como prática social que tem uma potência imensa, sendo assim, é capaz de construir fazeres pedagógicos de combate ao racismo.
FÁBIO BALDAIA, sociólogo, professor do Campus Salvador
Portal IFBA: Durante muito tempo a história da abolição da escravatura nos foi contada como uma espécie de concessão do Estado brasileiro, como resultado de uma evolução civilizatória etc. Essa versão deixou de fora ou minimizou a importância e o protagonismo das lutas do povo negro escravizado, das comunidades dos quilombos, do movimento abolicionista, entre outros fatos. O que os livros não nos contaram sobre a Abolição ou contaram de forma mal contextualizada nos últimos 50 anos?
Fábio Baldaia: É parte da história e da historiografia a disputa sobre o domínio da narrativa histórica. Então, a maneira como se conta a história e a maneira como se faz a pesquisa em História, também está em disputa. Com o tema Escravidão não foi diferente. Há uma mudança nas últimas duas ou três décadas, talvez um pouco mais, sobre a maneira como a escravidão é tratada e, consequentemente, a repercussão na sociedade contemporânea.
A escravidão foi um estruturante social, econômico e cultural do Brasil. Foi uma instituição perversa da América portuguesa (dominante) e não seria possível a colonização sem a instituição da escravidão – nisso é importante ter muita clareza. A instituição da escravidão foi simplesmente imprescindível para que a colonização acontecesse. Por isso a manutenção da metrópole portuguesa a todo custo da escravidão e a repressão brutal a qualquer tipo de resistência mais organizada no sentido de tentar acabar com este sistema. Foi a escravidão que permitiu a viabilização da colonização portuguesa – que não era uma colônia com metais preciosos (pelo menos não imediatamente) como a América espanhola, que achou logo ouro, prata. Aqui, no Brasil, não se achou – foi se achar ouro em Minas Gerais 200 anos depois.
A historiografia sobre a escravidão, pelo menos desde a década de 80, modificou a visão sobre o tema – introduzindo a noção de negociação e de resistência. Na Bahia, especialmente, tem um historiador chamado João Reis, que é uma figura fundamental nessa guinada. Há uma nova visão – quer dizer: o escravo não era simplesmente passivo: ele negociava, ele resistia e ele se organizava para resistir. Ou seja: dá uma capacidade de agência, de ação política, do indivíduo escravizado. Além disso, desde a década de 1970 um avanço da luta antirracista no Brasil, que vai modificar o debate público sobre racismo e, consequentemente, sobre os quadros que vão entrar na universidade e sobre os temas de análise. Se passou a ver a escravidão como um sistema que, ao contrário do que se pensava, sofreu bastante resistência. Fuga, os quilombos - que são as formas mais organizadas-, mas também reações físicas contra os senhores, os feitores e a negociação. O senhor de escravo tinha que ceder algumas dimensões da vida do cativo, então: licença para a realização de festas, existem casos da brecha para produção própria de alimento e itens agrícolas dentro dos engenhos e outras fazendas de produção de outros itens, então havia bastante resistência e negociação. Onde tem poder, tem resistência – e não foi diferente no processo de escravidão.
Portal IFBA: Além da resistência, o movimento abolicionista teve também um papel importante...
Fábio Baldaia: Os negros libertos já eram maioria em 1888, por toda uma série de processos, tanto legais (Lei do Ventre Livre, Lei do Sexagenário), mais processos de resistência e de luta abolicionista. Essa resistência e essa negociação da população negra se somam à mudança econômica (modernização, capitalismo) e ao contexto histórico de enfraquecimento da monarquia no Brasil. Em suma, houve uma ação política dos negros na luta contra a escravidão (negociando e resistindo) e, também, houve o papel de uma intelectualidade negra no processo de abolição: José do Patrocínio, Luiz Gama, André Rebouças, diversos intelectuais negros já eram importantes e atuantes.
Portal IFBA: Como sociólogo, como analisa o fato de, mesmo após mais de 130 anos passados da dita abolição da escravatura, o preconceito racial contra a população negra ainda estar tão arraigado na sociedade brasileira?
Fábio Baldaia: Não existiu política compensatória após a escravidão - de educação, reforma agrária, distribuição de terra, treinamento para o mercado de trabalho... Houve simplesmente a abolição e cada um que se virasse, que se mantivesse como fosse possível – num contexto de incentivo à imigração. Enfim, não houve nenhuma transição. Houve uma ruptura abrupta de um modo de organização das relações de trabalho via escravidão. Não se coloca claramente no debate público brasileiro a brutalidade, o horror, a perversidade da escravidão desde o sequestro no continente africano, passando pelo transporte no navio dos traficantes – com alta mortalidade, doenças e tudo o mais – até chegar na condição de cativo. Não se fala sobre isso. Parece que foi uma coisa leve e há uma romantização até nas novelas. Mas foi realmente brutal. A gente vê filmes sobre escravidão no cinema americano, a escravidão é sempre retratada com brutalidade, com violência que é o que é. Escravidão mutilava, torturava, castigava, separava o indivíduo da família, impedia o uso da língua e demais manifestações culturais. Então a condição de cativo era absolutamente degradante – e isso precisa ser dito com mais clareza. As representações sobre a escravidão são brandas e mostram a escravidão como se fosse branda. Há uma persistência de uma gigantesca desigualdade social no Brasil, no mundo contemporâneo, que se abate principalmente sobre a população negra – isso vai reverberar na reprodução das posições na estrutura social – então se tem baixa mobilidade e pouca possibilidade de competir no mercado de trabalho. Não se tem as ferramentas para competir – ferramenta no sentido do aprendizado para poder realizar alguma coisa que vai te trazer melhor remuneração ou te possibilitar ascensão social. Isso se deve a fatores relacionados ao preconceito, sim, à discriminação, sim, obviamente, mas também ao caráter da escola, que confirma a desigualdade – não é uma instituição que tem proporcionado ascensão, não possibilita melhores posições, assim como todos os outros fatores sociais relacionados, também, à escola que fazem com que haja uma reprodução da marginalização e o baixo acesso aos bens sociais como um todo (econômicos, fundamentalmente, mas também simbólicos e sociais). Para combater isso, é preciso que o Estado haja para reverter esta tendência à reprodução - há uma reprodução disso no Brasil há mais de 100 anos, inclusive institucionalizada. É preciso mecanismos de combate ao racismo, mas também mecanismos de produção de equidade no acesso ao que é socialmente produzido e valorizado. São essas medidas que farão efetivamente do Brasil uma República que inclui a maioria da população.
VERA NATHÁLIA e ADRIANA OLIVEIRA DA SILVA, professoras do Departamento de História do Campus Salvador
Portal IFBA: Durante muito tempo a história da abolição da escravatura nos foi contada como uma espécie de concessão do Estado brasileiro, como resultado de uma evolução civilizatória etc. Essa versão deixou de fora ou minimizou a importância e o protagonismo das lutas do povo negro escravizado, das comunidades dos quilombos, do movimento abolicionista, entre outros fatos, nesse processo, assim como excluiu ou reduziu a importância de aspectos do próprio contexto econômico e político do Brasil que contribuíram para que parte da elite econômica fosse favorável à abolição. O que os livros didáticos de história do Brasil não nos contaram sobre a Abolição ou contaram de forma mal contextualizada nos últimos 50 anos?
Vera Nathália e Adriana Oliveira da Silva: A Lei Áurea não pode ser tratada como uma concessão do Estado brasileiro, marcado pelo autoritarismo e pelo racismo. As leis abolicionistas resultaram da pressão social e política exercida por inúmeros agentes que vivenciaram a crueza da escravidão e se levantaram para exigir seu fim. Falar do livro didático é muito complexo, mas vale sinalizar que existe uma enorme produção historiográfica produzida por décadas nos programas de pós-graduação em História com diferentes abordagens do processo de escravização, das lutas abolicionistas e do pós-abolição que vem chegando às salas de aula, principalmente através do compromisso docente em atualizar as discussões e desconstruir ideias arraigadas no senso comum.
Portal IFBA: Como historiadoras, qual a análise que fazem sobre o fato de, mesmo depois de 130 anos da abolição da escravatura, o preconceito racial com a população negra ainda estar tão arraigado na sociedade brasileira?
Vera Nathália e Adriana Oliveira da Silva: O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. Em 7 de maio de 1888, o Parlamento brasileiro, amedrontado pelo avanço do movimento abolicionista, votou em favor do Projeto que pôs fim a escravidão no Brasil. A Lei 3.353, famosa Lei Áurea, sancionada pela Princesa Regente em 13 de maio de 1888, continha apenas dois artigos. O 1º declarava extinta a escravidão e o 2º revogava as disposições em contrário. Nada se mencionou sobre políticas de inclusão e cidadania para o povo preto, depois de séculos de resistências e lutas. Fala-se do 13 de maio, mas e o 14 de maio? Lançado à própria sorte, a data representa o inicio de outra caminhada árdua em busca de cidadania plena, cidadania que esbarra nos limites concretos de uma sociedade que excluiu essa enorme parcela da população do acesso aos direitos mais básicos, como também esbarra no imaginário que construiu por séculos uma imagem do preto e da preta carregada de significados inferiorizantes e desqualificadores.