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“É preciso trazer os índios para a universidade, para que eles nos ensinem de forma recíproca”

A declaração é da professora Carla Camuso, da Licenciatura Intercultural Indígena do Campus Porto Seguro. Na última quinta-feira (2) a docente fez palestra no Cortejo Virtual em Defesa da Ciência. Em entrevista ao Portal IFBA, ela enfatizou: “as instituições precisam se aproximar das comunidades indígenas”
por Bárbara Souza publicado: 06/07/2020 16h20, última modificação: 06/07/2020 23h10

A participação do IFBA no Cortejo Virtual em Defesa da Ciência, promovido pela Academia de Ciências da Bahia na última quinta-feira (02), contou também com a palestra de Carla Camuso, professora da Licenciatura Intercultural Indígena do Campus Porto Seguro, curso que já coordenou. Professora efetiva do IFBA, Carla atua também nos cursos da modalidade Técnico Integrado.

 "Cultura, Arte e as Questões Indígenas no Sul da Bahia em Tempos de Pandemia foi o tema da exposição da docente que integrou a mesa sobre cultura e arte, mediada pelo vice-reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), professor Paulo Miguez.

 A reportagem do Portal IFBA conversou com Carla Camuso, que é mestre em Educação pela Universidade de Brasília (UNB). Graduada em Artes Plásticas pela Ufba, a docente já foi supervisora do Programa Saberes Indígenas – Uneb/IFBA e tem larga experiência em arte-educação, com ênfase em artes-visuais, história da arte e arte indígena. Confira:

Portal IFBA: O Cortejo Virtual em Defesa da Ciência  mobilizou a comunidade científica em nível nacional e contou com a participação da presidente da Fiocruz [Nisia Trindade Lima] e dos presidentes da SBPC [Ildeu de Castro Moreira] e da Academia Brasileira de Ciências [Luiz Davidovich], só para citar alguns exemplos. Como avalia a importância de o tema "Cultura, Arte e as Questões Indígenas no Sul da Bahia em Tempos de Pandemia” ser discutido num evento dessa envergadura?

Carla Camuso: Um evento dessa natureza com importantes participações foi uma grande demonstração de que a comunidade acadêmica e científica está atenta, ativa e operante contra uma espécie de movimentação que está retroagindo o pensamento da Nação.

 Estamos em um momento no Brasil que precisamos mais do que nunca unir forças entre todas as instâncias acadêmicas para a defesa da ciência e de uma educação de qualidade. Paralelamente a isso, nossos avanços socioculturais, que estavam num processo contínuo de construção, também se depararam com um cenário onde as tentativas de dissolução dessas conquistas, especialmente no âmbito cultural, têm sido constantes.

 Por outro lado, a sociedade acadêmica também precisa compreender melhor o papel da formação cultural de um indivíduo. Um profissional que detém apenas o conhecimento técnico, pouco valerá se for destituído da percepção cultural em seu meio, pois terá dificuldades em exercer sua profissão de forma justa, equânime, priorizando os aspectos humanos e sociais, visto que não saberá reconhecer e valorizar as diferenças e os diversos “Brasis” que temos. Esse é um dos motivos que infelizmente aumenta a intolerância e o preconceito.

 Com relação à pandemia, enquanto a Ciência faz uma corrida na busca de soluções para vencer o vírus, a Arte acompanha nossa vida tornando-a mais leve e socorrendo nossa saúde mental, especialmente durante o tempo de isolamento.  Por isso, achei de grande valia acrescentar o tema ao Cortejo Virtual em Defesa da Ciência porque ambas caminham lado a lado na luta por um mundo melhor.

 

 Portal IFBA: Na sua apresentação, e a propósito declaração do ex-ministro da Educação  que disse ter “ódio" da expressão "povo indígena" - e defendeu a tese de que "somos um povo só"-,  a senhora chamou atenção para o fato de que parte da população brasileira desconhece direitos dos povos indígenas assegurados pela Constituição Federal.  Como as instituições de ensino podem contribuir para a difusão de conhecimento e informações sobre os povos indígenas, sua cultura, sua história e seus direitos?

 Carla Camuso: As instituições de Ensino já contam com uma ferramenta legal que é a Lei 11645, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.  Contudo, apesar de ter sido sancionada em 2008, seu funcionamento não está sendo efetivo, visto que o corpo docente necessita de uma formação específica e continuada para fazer a abordagem de forma adequada. Nessa formação é necessário intensificar o estudo de legislações indígenas e indigenistas que auxiliará nas discussões com os discentes que, a todo tempo, estão divulgando seus pensamentos em redes sociais sem se preocuparem se estão cometendo erros jurídicos, racistas ou até mesmo anticonstitucionais.

De forma mais contundente, as instituições precisam se aproximar das comunidades indígenas. O saber tradicional não está nos livros ou artigos científicos, por mais que reproduzam as diversas realidades indígenas ou tenham um olhar antropológico, porque a mentalidade e vivência sempre terá o viés cultural ocidental.

É preciso trazer o índio para a universidade, não somente para aprender aquilo que nós achamos que temos a ensinar, mas para que eles nos ensinem de forma recíproca como seu modus vivendi pode nos ajudar a viver na coletividade, no respeito ao próximo e na integração com a natureza. E isso não é um pensamento romântico da minha parte pois há doze anos conhecemos de perto todas essas dimensões ao trabalhar com aproximadamente 40 aldeias indígenas distribuídas entre os povos Pataxó, Pataxó Hãhãhãe e Tupinambá, presentes no sul e extremo sul da Bahia.

A promoção de visitas técnicas em comunidades tradicionais deve ser estimulada. A presença de docentes e discentes nessas comunidades também é um bom mecanismo para conhecê-las, identificar e vivenciar de perto os problemas que enfrentam e as soluções que buscam. É preciso conversar com caciques, lideranças, com os anciões que são a fonte de sabedoria para todos os povos indígenas em geral.

Portal IFBA: Como a Licenciatura Intercultural Indígena do IFBA Porto Seguro contribui para a transformação da realidade dos povos indígenas que vivem no sul da Bahia?

Carla Camuso: Temos o maior orgulho em dizer que nosso trabalho tem dado muitos resultados positivos. Nossos egressos estão ocupando muitos espaços que lhes pertencem por direito e que anteriormente não eram ocupados, a exemplo de Secretarias Especiais Indígenas, Superintendência Indígena, Secretaria Especial de Saúde Indígena-Sesai, Diretoria de Escolas Indígenas, além de estarem atuando na Educação Escolar Indígena/ensino fundamental e médio em suas comunidades. Muitos já estão com mestrado em curso.

A atuação em nas aldeias também tem sido um marco para nossos egressos pois, ao ingressarem no ensino de nível superior passam a ser reconhecidos como lideranças em suas comunidades.

A proposta de nossos componentes curriculares prioriza a atuação prática dos discentes de forma que eles conseguem fazer estudos teóricos no campus e fazem experiências in loco durante o período em que estão em suas comunidades. Com isso, levantam os problemas comunitários existentes e propõe soluções.

Portal IFBA: Como essas práticas são feitas?

Carla Camuso: Em suas aldeias os estudantes da Licenciatura Intercultural Indígena criam projetos para participação em editais, catalogam, registram plantas medicinais utilizadas por seus antepassados, músicas cantadas pelo povo, histórias, práticas de subsistência a exemplo da pesca, ou seja, estão produzindo constantemente material didático para serem utilizados em suas escolas nas mais diversas áreas de conhecimento. É importante salientar que anteriormente esse conhecimento muitas vezes fora perdido com a morte de anciãos e com a ausência de registro.

 Os licenciandos e licenciados ainda participam do gerenciamento de reservas e áreas de proteção ambiental, fazem palestras aos turistas e em tempos de pandemia, temos visto alguns deles fazendo lives contando suas experiências.  Isso foi uma pequena parcela das contribuições, mas a lista é grande!  

Portal IFBA: Práticas realizadas sempre numa perspectiva intercultural...

Carla Camuso: O melhor é que buscamos apresentar os conhecimentos ocidentais apenas para inseri-los no contexto global em que vivem e para que eles comuniquem sua cultura para o mundo. Ao mesmo tempo valorizamos e fortalecemos as suas tradições ao estimular a pesquisa interna, garantido a longevidade de seus saberes, respeitando o protagonismo e o bilinguismo, que são condições imprescindíveis para a existência de um curso intercultural indígena.

* Os vídeos de todas as atividades realizadas no Cortejo Virtual em Defesa da Ciência, ao longo da quinta-feira (02), inclusive da mesa sobre Cultura e Arte da qual a professora Carla Camuso participou, estão disponíveis no site do evento.